Por Ciça Carboni
Em maio de 2014, Therezinha de Godoy Zerbini recebeu homenagem da Prefeitura de São Paulo pela luta contra a ditadura militar. Ela tinha 86 anos. Entrei em contato com D. Therezinha no final de 2006. Eu tinha acabado de entrar no programa de mestrado da PUC-SP e ela era umas das minhas principais fontes para a pesquisa.
Feito o contato, fui até a casa dela, no bairro do Pacaembu. Therezinha gostava de contar suas histórias e eu estava lá para ouvi-la e voltei algumas vezes.
Ao final da nossa primeira conversa, ela me convidou para ficar para o almoço. Respondi que não poderia, então me ofereceu uma banana para que eu não fosse embora de barriga vazia, já que tinha outros compromissos. Da segunda vez, fiquei para o almoço, da terceira vez, acompanhei ela até seu quarto, pois ela se sentia cansada. Fechei a porta e fui embora. E nunca mais vi Dona Therezinha.
Essa senhora que me disse, “pegue ao menos uma banana, pra não ficar de barriga vazia”, era a mesma que tinha sido presa na Operação Bandeirantes, no Dops e no Presídio Tiradentes. Era a mesma que abrigava estudantes e pessoas que estavam clandestinas na casa dela que se escondem das forças policiais repressivas. Era a mesma que, casada com um general do Exército, provocou a ditadura militar ao organizar o Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), em 1975.
Mesmo enquadrada na Lei de Segurança Nacional e monitorada por serviços de inteligência, Dona Therezinha organizou o movimento e conclamou a soldada Maria Quitéria para luta.
Em 1977, para intensificar a comunicação com os setores sociais, o MFPA cria o boletim Maria Quitéria, usando a imagem da soldada de saiote, convocando a patrona do Exército a combater o poder arbitrário e masculino, instituído pelo golpe civil militar de 1964.
O Exército brasileiro demonstra especial apreço e intimidade com a política brasileira há tempos. Durante as lutas de Independência do Brasil, na Bahia, o então soldado Medeiros foi descoberto porque se feriu em combate e teve que revelar sua maior fragilidade e, ao mesmo tempo, sua maior potência: ser mulher.
Inconformada com seu destino, soldado Medeiros, agora Maria Quitéria, parte para a guerra tentando mudá-lo. É reconhecida pela bravura e feitos militares, passa a combater de saiote, contam os relatos. Fim do conflito, independência reconhecida, onde foi parar a independência de Maria Quitéria? Morreu sem mudar seu destino e se tornou a patrona do Exército brasileiro.
Maria Quitéria e Therezinha Zerbini: mulheres de luta
Maria Quitéria e Therezinha Zerbini, fizeram suas próprias lutas de independência pessoal, rompendo padrões, pois ousaram ser mulheres que fizeram política e a guerra, impondo seus desejos, de vida e de resistência, palavra batida e sempre pertinente, quando se pensa na vida de mulheres.
A anistia veio, perdoou quem resistiu ao regime de repressão, mas também quem torturou, sequestrou, matou e desapareceu com corpos. Sobretudo legou uma memória esvaziada, que possibilita a criação de uma farsa, de que naqueles anos vivíamos numa democracia e que hoje servem de alimentação para teorias negacionistas. De fato, a anistia reverbera até hoje, pois produziu e ainda produz ressentimentos pouco esclarecidos. Dona Therezinha dizia que aquela foi a anistia possível, não a ideal, e se orgulhava do combate.
A atuação política de Therezinha Zerbini não parou depois da anistia. Ela seguiu como colaboradora de Leonel Brizola, inclusive na fundação do PDT e como uma cidadã ativa na vida política brasileira, até seu encantamento em março de 2015.
Leia mais do especial 07 de setembro:
Sobre a autora
Ciça Carboni é jornalista, documentarista e professora do Centro Universitário das Americas – FAM. Doutora em Comunicação e Semiótica pelo COS/PUC-SP e autora do livro – Quem sabia já morreu.