O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem tendo uma atuação bem aquém daquela que se esperava em matéria de demarcação das áreas indígenas. A crítica é do antropólogo Luis Ventura Fernández, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Essa lacuna representa um risco aos direitos dos povos originários.
Em entrevista à edição de ontem do CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília —, ele frisou que a Lei.14.701 (que estabelece o Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas) é inconstitucional e que a Câmara de Conciliação que vem sendo realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) vem tentando negociar direitos fundamentais das nações originárias. A seguir, os principais pontos da entrevista.
Como o senhor enxerga, atualmente, a pauta indígena no Brasil?
Está iniciando hoje (ontem) a 21ª edição do Acampamento Terra Livre, que é um grande movimento e uma grande mobilização dos povos indígenas em nível nacional. Acho que o acampamento deste ano chega num momento particularmente sensível para a pauta indígena, porque, após 36 anos, estamos vendo como os direitos que foram consagrados na Constituição Federal de 1988, particularmente nos artigos 231/232, estão sendo claramente afrontados, desafiados e, inclusive, negociados para tentar modular aquilo que garantiu a Carta. A Lei 14.701, que está em vigor, promulgada pelo Congresso em dezembro de 2023, instala de forma ilícita uma série de dispositivos totalmente contrários aos direitos dos povos indígenas — e agressivamente contra a vida e seus territórios. O artigo 231 da Constituição é aquele que reconhece os povos indígenas e os direitos originários. Este conceito é absolutamente fundamental, porque direitos originários são aqueles que preexistem à formação do próprio Estado brasileiro. Esse artigo, particularmente naquilo que fala do direito às terras tradicionalmente ocupadas, pode-se dizer que, hoje, está afrontado pela promulgação da Lei 14.701, que afirma que prevalece a tese do Marco Temporal, que, no nosso entendimento, é falaciosa e inconstitucional. A partir daí, estamos vivendo um momento no Brasil muito delicado no sentido de uma desaceleração e uma falta de garantia da demarcação dos territórios indígenas. Isso sempre vem acompanhado de um aumento da violência contra os povos indígenas em seus territórios.
Por que o senhor entende que existe esse movimento do Congresso para ameaçar os indígenas?
O Congresso, tradicionalmente, representa de forma majoritária interesses políticos e econômicos daqueles que detêm os principais poderes econômicos do país. Isso faz parte da configuração histórica do Parlamento. Temos um Congresso extremamente hostil, até reacionário, a tudo que é matéria de direitos humanos fundamentais e a tudo que é matéria de direitos ambientais. Representa, principalmente, interesses de setores como o agronegócio ou a indústria da mineração, e trabalha sempre na contramão daquilo que foi garantido pela Constituição, que é o direito dos povos indígenas aos seus territórios. Isso vem desde a colonização (do Brasil) até agora. São grandes interesses econômicos se apropriando de territórios indígenas e, portanto, expulsando os povos daquele que é o lugar que lhes pertence. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal determinou que a tese do Marco Temporal não existe e é inconstitucional. O Congresso não apenas a Constituição, mas os povos indígenas e o próprio STF, avançando com a aprovação do projeto de lei 14.701. Esperávamos que o STF, de forma célere, declarasse a inconstitucionalidade da lei, mas não foi isso que aconteceu.
E a Câmara de Conciliação sobre o Marco Temporal?
O Supremo apesar de ter tomado uma decisão pela inconstitucionalidade do Marco Temporal, não apreciou até agora a inconstitucionalidade da lei. Pelo contrário: o ministro Gilmar Mendes criou uma Câmara de Conciliação, que, no nosso ponto de vista, é uma iniciativa que não tem a competência, não tem a pertinência e não é legítima para poder falar de direitos humanos fundamentais. Direitos Humanos fundamentais não podem ser conciliados, negociados, modulados ou ponderado. Direitos humanos fundamentais se garante. Mas ele instalou uma Câmara de Conciliação que, até o dia de hoje, pretende chegar a acordos impossíveis e que, na verdade, pretendia que os povos indígenas abrissem mão de parte de seus direitos. A ideia, hoje, na mesa de conciliação, é que poderiam afastar o Marco Temporal pela sua inconstitucionalidade, mas, em troca, os povos indígenas teriam que aceitar uma série de ameaças graves aos seus territórios. Direitos não se negociam, direitos não se condicionam, porque quando um direito é condicionado, deixa de ser um direito.
E a atuação do governo na demarcação de terras?
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva significou um avanço, se comparado com o governo anterior de Jair Bolsonaro — que significou uma hostilidade, uma paralisação absoluta. O governo federal avançou na criação de grupos de trabalho, na assinatura de portarias declaratórias pelo Ministério da Justiça, na homologação de alguns territórios. No entanto, no nosso entendimento, o governo federal ficou muito aquém das expectativas e, sobretudo, muito aquém do que é necessário. O Estado brasileiro tem um passivo, pelos números que o Cimi apresentou, no ano passado, no Relatório da Violência contra os Povos Indígenas, de 850 territórios indígenas que ainda aguardam a conclusão do procedimento de demarcação. O que temos hoje são os Três Poderes nessa Câmara de Conciliação tentando negociar direitos que são inegociáveis.
Há, então, uma redução de expectativas nesse governo Lula III com os dois anteriores do presidente.
Se formos comparar com os governos Lula anteriores, tinha uma média de 10 homologações por ano. O atual está muito longe disso. Estamos com pouco mais de dois anos de governo e foram homologados 13 territórios. O que mais nos preocupa é que, antes da aprovação da Lei 14.701, em dezembro de 2023, ao longo do ano, quando não havia esta mesma lei, o governo Lula não declarou nenhum território indígena. O Ministério da Justiça, à época, não fez nenhuma portaria declaratória, e houve pouquíssimas homologações. Há avanços — é um governo que criou um ministério para os povos indígenas, reequipou a Funai —, mas fica muito aquém do que estamos precisando. Estamos caminhando para o terceiro ano de governo Lula e esperávamos estar numa condição muito melhor do que a de agora.
Por: Correio Braziliense