Problema desde a década de 1990, diferentes prefeitos já apostaram na violência para espalhar a Cracolândia. A receita nunca deu certo
A “surpresa” do prefeito Ricardo Nunes (MDB) com a súbita queda no número de usuários na Cracolândia, na Rua dos Protestantes soa irônico diante da realidade das ruas da capital. O que se vende como sucesso administrativo é, na prática, o velho roteiro de dispersão violenta que se repete há décadas em São Paulo. Entenda na TVT News.
O local, cercado por gradis e muros pela própria prefeitura — e comparado a um “curral humano” pela Defensoria Pública — amanheceu praticamente vazio nesta terça-feira (13), enquanto multiplicam-se os relatos de repressão e as “mini Cracolândias” pipocam por toda a cidade. “Saída das pessoas do fluxo se deu por ameaças e violência de policiais”, afirmou hoje (16) ao jornal O Globo, o vigário do povo de rua, padre Júlio Lancelolotti, que trabalha no acolhimento dos mais pobres.
Velha receita na Cracolândia
Segundo mapeamento da Secretaria de Segurança Pública, há hoje ao menos 72 pontos de uso espalhados por São Paulo, consequência direta da repressão descoordenada e da falta de um plano de longo prazo centrado na dignidade humana.
Essa pulverização do fluxo não é novidade: já ocorreu sob Kassab (operação Dor e Sofrimento em 2012), voltou com força na gestão Doria (que disse que a Cracolândia não voltaria mais a existir em 2018) e agora se repete sob Nunes e o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Cenas de uso se espalharam pela cidade nos últimos dias, de acordo com a SSP
Enquanto o prefeito declara que a diminuição do fluxo se deve à “atuação gradativa” dos serviços de saúde, assistência social e forças de segurança, não há qualquer resposta oficial sobre para onde foram os usuários da área central, tampouco existe transparência sobre as condições dessas abordagens. O que se escancara, isso sim, são os relatos de violência e abuso.
A ONG Craco Resiste denuncia que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) recebeu orientação para intensificar a truculência nas abordagens, aumentando o uso de spray de pimenta, confiscando pertences pessoais e, sobretudo, agredindo deliberadamente usuários no rosto e na cabeça — agressões que configuram não apenas abuso institucional, mas prática desumana que fere o princípio da dignidade da pessoa humana.
“Limpeza social” na Cracolândia
Relatos semelhantes foram colhidos por projetos de extensão da USP e da Unifesp, que acompanham de perto a política de “limpeza social” conduzida pela prefeitura. Esses testemunhos indicam que, longe de serem acolhidos, os usuários vêm sendo empurrados para fora dos olhares do centro, varridos como lixo urbano, num processo de higienização que visa mais tranquilizar investidores do que garantir direitos básicos à saúde, moradia e tratamento.
É verdade que a Prefeitura tem aumentado os números de atendimentos e acolhimentos, como mostram os registros do CAPs Redenção e do HUB. Em abril, foram mais de 11 mil abordagens e 10 mil atendimentos. Mas esses números, sozinhos, pouco significam diante de uma política que trata o usuário de drogas como um problema de segurança, e não como sujeito de direitos.
Há mais de 30 anos, a Cracolândia é palco de promessas, operações policiais, deslocamentos forçados e estatísticas manipuladas. O padrão é sempre o mesmo: em vez de lidar com a raiz do problema — o ciclo de pobreza, abandono, exclusão e dependência química —, o poder público recorre ao improviso repressivo e midiático.
Estigmas e repressão
O atual ciclo de dispersão, violência e omissão lembra que a política de drogas em São Paulo continua sendo baseada em estigmas e repressão, mascarada por discursos tecnocráticos. Os usuários continuam sem política de habitação, sem atendimento psiquiátrico continuado, sem redução de danos eficaz. O que há, em larga escala, é o uso da força para esconder a miséria que a cidade se recusa a encarar.
No fundo, trata-se menos de resolver o problema do que de escondê-lo. A Cracolândia, portanto, não acabou. Ela foi espalhada — novamente. E enquanto a violência for o principal instrumento de gestão social, o resultado tende a ser o mesmo.
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