A certidão de óbito do engenheiro e ex-deputado federal Rubens Paiva foi oficialmente retificada ontem (23), quase 54 anos após seu assassinato durante a ditadura civil-militar (1964/1985). O novo documento, emitido pelo Cartório da Sé, em São Paulo, reconhece que Paiva desapareceu em 1971 e foi vítima de morte violenta causada pelo Estado no contexto da perseguição política promovida pelo regime ditatorial instaurado em 1964.
A alteração atende à resolução aprovada em 13 de dezembro do ano passado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determina a correção das certidões de óbito de mortos e desaparecidos durante a ditadura.
Culpa da ditadura
O novo texto da certidão afirma:“Procedo a retificação para constar como causa da morte de RUBENS BEYRODT PAIVA, o seguinte: não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964 e para constar como atestante do óbito: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).”
Em 1996, após uma longa batalha judicial conduzida por sua esposa, Eunice Paiva, a primeira versão do documento reconhecia apenas o desaparecimento de Rubens Paiva. Agora, a nova certidão marca um passo importante no reconhecimento histórico e jurídico das violações cometidas pelo regime militar.
Rubens Paiva e a memória
A história de Rubens Paiva e a luta de sua esposa, Eunice, são o centro do filme “Ainda Estou Aqui“, dirigido por Walter Salles. O longa foi indicado a três categorias do Oscar nesta quinta-feira: melhor filme, melhor atriz (Fernanda Torres, que interpreta Eunice) e melhor filme internacional.
O filme resgata não apenas a memória de Paiva, mas também o papel de Eunice como uma das maiores ativistas dos direitos humanos no Brasil. Após a morte do marido, ela deixou de ser uma dona de casa para se tornar uma voz poderosa em defesa da memória e da justiça.
Reparação histórica
A retificação das certidões de óbito faz parte de um esforço mais amplo para reconhecer oficialmente as violações cometidas pela ditadura militar. Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, o regime foi responsável por 434 mortos e desaparecidos, dos quais 202 já tinham certidões de óbito, agora corrigidas, e 232 que finalmente terão direito ao registro.
Os novos documentos explicitarão que as mortes foram causadas pelo Estado. Segundo o vice-presidente do Operador Nacional do Registro Civil, Gustavo Renato Fiscarelli, a entrega das certidões será feita pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em solenidades que incluirão pedidos de desculpas e homenagens às famílias.
“Elas não precisam vir ao cartório. Serão contactadas no momento oportuno já com as certidões em mãos para que possam ter seu direito de reparação consagrado”, explicou Fiscarelli.
Primeiros passos
Na última semana, as irmãs Crimeia Almeida e Amélia Teles, a Amelinha, foram as primeiras a receber uma certidão corrigida de um amigo, Carlos Nicolau Danielli, morto sob tortura no DOI-CODI, em 1972. Antes, sua causa de morte constava como “anemia aguda traumática”. Agora, o documento reconhece a violência praticada pelo Estado.
A advogada Angela Mendes de Almeida também enfrentou anos de luta para corrigir a causa da morte de seu companheiro, o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto em 1971. Apenas em 2018 a alteração foi concluída.
Para especialistas e ativistas, as retificações representam mais do que ajustes burocráticos: são um marco simbólico na busca por justiça e memória. O reconhecimento oficial das violações cometidas pelo regime militar é um passo crucial para enfrentar o passado e evitar que atrocidades semelhantes se repitam.
A história de Rubens Paiva, Eunice Paiva e tantas outras vítimas ecoa como um lembrete da importância de preservar a democracia e os direitos humanos. As famílias, que por décadas enfrentaram silêncio e impunidade, agora recebem um gesto tardio de justiça e dignidade.