Por Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
A posse de Donald Trump para um segundo mandato nos Estados Unidos é um fato que gera alarme no mundo todo. Antes de mais nada, ele terá maioria não apenas no Executivo, mas também nas duas casas legislativas e na Suprema Corte, o que não acontece há muito tempo naquele país. Além disso, recentemente, o principal tribunal dos Estados Unidos decidiu que o presidente da República é imune a processos criminais, o que rompe com toda uma tradição democrática e, ainda mais, com o Estado de Direito.
É bom lembrar que esse assunto foi uma das grandes polêmicas na Inglaterra já no começo do século XVII, quando o rei Jaime I alegava que estava acima da lei. Seus principais juízes, no entanto, argumentavam que o rei estava acima de todos os cidadãos, mas não da lei. A curto prazo, o rei ganhou, mas a longo, ele perdeu – e ganharam o Estado de Direito e a democracia.
São, portanto, 400 anos de avanços jurídicos que agora estão sendo repudiados por Trump e pela sua Suprema Corte. Essa decisão foi tomada antes mesmo de sua eleição, quando o tribunal declarou que ele não podia ser processado ou condenado por crimes cometidos no exercício do poder.
Outro fator muito importante no pensamento político da democracia ocidental, especialmente na norte-americana, é a ideia de equilíbrio de poderes. Seu pressuposto é uma frase famosa de Lorde Acton, pensador inglês, católico e liberal do século XIX: “Todo poder tende a corromper; o poder absoluto corrompe absolutamente.” Essa frase, às vezes mal interpretada, não significa que todo poder corrompe inevitavelmente. O que Acton quis dizer é que o poder tem uma tendência a corromper, mas só corrompe absolutamente quando ele se torna absoluto.
Ou seja, a corrupção do poder não é inevitável, mas uma tendência que pode ser controlada. Como impedir sua corrupção? Inspirados em Montesquieu, os americanos, na criação de sua Constituição, formularam a ideia de equilíbrio de poderes. Isso significa que, para evitar o poder absoluto, os três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — devem limitar-se mutuamente. Nenhum deles deve ser superior ao outro; o sistema funciona por meio de freios e contrapesos que permitam sua limitação recíproca.
Isso quer dizer que nenhum deles é perfeito. Na verdade, a suposição de Acton é que o poder é necessariamente imperfeito (“tende a corromper”) e por isso mesmo a única forma de conter o veneno que ele porta é por uma mecânica, uma engenharia de pesos e contrapesos (os checks and balances da tradição norte-americana).
Essa mecânica, que foi concebida para conter os problemas que o poder pode gerar, está agora ameaçada pela concentração de poderes nas mãos de Trump. Além disso, as medidas tomadas no início de seu novo mandato incluem várias ações que violam a legislação, ameaçam os princípios da Constituição dos Estados Unidos — como o direito de cidadania pelo solo —, enfrentam compromissos internacionais e afrontam a ética. Essas decisões são graves e podem trazer grandes problemas para todos nós.
Nosso primeiro foco: saúde e meio-ambiente
Este quadro mais amplo, que se abre para o mundo com a vitória de Trump em 2024, delineia uma situação mais preocupante do que a que surgiu com sua eleição em 2016. Naquela época, foi uma surpresa, porque nem ele mesmo esperava vencer. Desta vez, porém, foi algo longamente amadurecido e para o qual ele se preparou, utilizando uma relação de decretos-leis — chamados nos Estados Unidos de “ordens executivas” — que revertem uma série de políticas importantes, impactando a sociedade humana de uma vez só.
O problema é evidente: é preciso agir. Diante disso, a SBPC decidiu dedicar a discussão neste especial da semana em torno do novo Governo Trump. Infelizmente, como não é possível reverberar todos os alicerces que se caracterizam nessa retomada de poder governamental da extrema-direita – com destaque à postura de intolerância de Trump sobre questões relacionadas a sexualidade e gênero – iniciaremos as indagações sobre dois segmentos onde os Estados Unidos já demonstraram retrocessos no comparativo com o restante do mundo, as políticas de saúde e ambientais.
Ao retirar mais uma vez os Estados Unidos do Acordo de Paris, Donald Trump assumidamente decidiu não tomar medidas para combater uma crise climática que os Estados Unidos ajudaram a gerar, sendo os maiores emissores históricos de gases de efeito estufa. Da mesma forma, ao abandonar a Organização Mundial da Saúde (OMS), os Estados Unidos abriram mão da liderança que detinham no setor da saúde desde a Segunda Guerra Mundial, deixando a OMS sem seu maior financiador.
Com efeito, as medidas adotadas por Trump no início do seu segundo mandato vão contra toda a ideia de uma transição ecológica que permita enfrentar o aquecimento global e as mudanças climáticas que tanto ameaçam o planeta e, em especial, a sobrevivência da espécie humana. Lembremos, não se trata de “salvar o planeta”, que se nossa espécie desaparecer talvez até se revigore. Trata-se de salvar a humanidade de sua própria arrogância, de sua disposição a dissipar o que é renovável na natureza.
Além disso, as políticas relacionadas à saúde são profundamente preocupantes, especialmente ao considerarmos como Trump — e, no Brasil, Bolsonaro — lidaram com a pandemia da Covid-19. Ambos fizeram pouco ou nada para limitá-la e até estimularam atitudes contrárias à contenção da doença.
É bom lembrar o que as vacinas produziram, em termos de vidas salvas. A varíola matou 300 milhões de pessoas no século XX – mas a última fatalidade devida a ela se deu em 1978 (no Brasil, em 1971). Esse flagelo que devastou a humanidade por centenas de anos foi eliminado da face da Terra graças à vacina descoberta pelos turcos, no antigo Império Otomano, e que a embaixatriz inglesa naquele país levou à Europa Ocidental. Muitos a atribuem a Jenner, mas o mérito dele esteve na difusão europeia de algo já praticado pelas mulheres turcas com quem Lady Mary Montagu conviveu, em Istambul/Constantinopla. Na recente pandemia, chegamos a ter mais de quatro mil vidas perdidas por dia em nosso país, mas após a vacinação os números despencaram. Mesmo assim, o negacionismo praticado pelos governantes do Brasil e Estados Unidos levou a uma mortalidade, nestes dois países, bem superior à média mundial de 0,9 por mil pessoas.
Ciência diante de Trump
Enquanto comunidade científica, sempre lutamos por políticas globais. Questões como saúde e meio ambiente demandam ações locais, mas também iniciativas de cooperação internacional. A preservação do planeta é uma preocupação plural e não deve ser comprometida por visões equivocadas de governantes. Se uma potência como os Estados Unidos caminha para o obscurantismo e dominância de poder, cabe à Ciência, cada vez mais, lutar e conscientizar sobre o papel político e o impacto social de sua governança.