PSOL recebeu denúncias de que abortos em casos de stealthing não aconteciam por orientação da Secretária de Saúde de São Paulo
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acatou uma decisão popular iniciada pela Bancada Feminista do PSOL na Câmara Municipal de São Paulo e na Assembleia Legislativa de São Paulo para realizar abortos legais em caso de stealthing. A palavra de origem inglesa (dissimulação, em tradução livre) designa o ato de alguém retirar o preservativo durante a relação sem o consentimento da parceira. Veja mais em TVT NEWS.
Reportagem de Girrana Rodrigues
Justiça decide por aborto legal
A juíza Luiza Barros Rozas Verotti reconheceu que a prática de retirar é o preservativo é uma violência sexual análoga ao estupro. O pedido alegava que o Centro de Referência de Saúde da Mulher de São Paulo tem negado a realização de procedimento de aborto legal nas hipóteses de gestação decorrente de retirada de preservativo durante o ato sexual sem consentimento.
A co-vereadora da Bancada Feminista do Psol, Dafne Sena, afirmou que o partido recebeu muitas denúncias e por isso resolveu entrar com a ação na justiça. “Tanto de casos de pessoas que procuraram o hospital da mulher a partir desse direito e receberam a devolutiva de que esses atendimentos não eram dignos de aborto legal, quanto de funcionários que confirmaram isso e, confirmaram que era uma ordenação da Secretária de Saúde do Estado de São Paulo”, disse.
Dados do Ministério da Saúde mostram que em 2023, no Brasil, houve 2.687 casos de aborto legal. Só no estado de São Paulo, neste mesmo ano, foram realizadas 746 internações para esse procedimento.
Apesar disso, no ano passado, cinco hospitais da cidade de São Paulo responderam à intimação do Supremo Tribunal Federal, o STF, sobre atendimentos de aborto legal previstos na legislação, depois que mulheres denunciaram que hospitais da capital estariam negando o procedimento por causa de uma resolução do Conselho Federal de Medicina. Na época, a alegação era de que a resolução impedia a realização da assistolia fetal, mesmo em casos de estupro, quando da probabilidade de sobrevida do feto acima de 22 semanas.
A covereadora lembra que a decisão é em caráter liminar, mas que o PSOL vai continuar atuando no processo. Ela orienta que as mulheres que foram vítimas dessa violência que busquem atendimento. “Busque o hospital da mulher, os órgãos necessários, porque você tem esse direito”, reforçou.
Estupro marital por stealthing
Os cônjuges e namorados são autores de 1 a cada 8 estupros de mulheres no Brasil de acordo com pesquisa divulgada pela Gênero e Número. Foram analisados os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) entre 2011 e 2022. No total, são 42,5 mil casos em que o autor da violência era o parceiro da mulher.
A pesquisadora Tabata Tasse, da Rede de Pesquisadoras sobre Aborto pelo Direito de Decidir, acredita que isso revela que esses casos estão ligados ao tema do estupro marital. “Essa imagem do estuprador ideal, que se cultiva na rua, na escuridão, acaba por camuflar esses autores que tem uma relação afetiva com a vítima”, afirmou.
Ela ainda relata que o Projeto Vivas, ONG que auxilia meninas e mulheres a acessar serviços de aborto, já deparou com vários casos em a equipe do hospital decidia que a mulher não tinha sofrido violência sexual porque a mesma aconteceu por parte do marido ou do namorado.
Para a pesquisadora, organizações anti-aborto desconsideram as principais vítimas são meninas. “Imagine nas cidades onde sequer tem acesso ao aborto legal. Imagine naqueles serviços, muitas vezes, vinculados a ideologias religiosas e que obstaculizam o acesso ao aborto legal alegando ‘direito de consciência’ gerando uma retivitimização”.
A objeção de consciência é quando o profissional de saúde se nega a realizar um procedimento por questões morais, religiosas ou éticas. Um Projeto de Lei da deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL) quer estabelecer nos casos de aborto legal, que o profissional de serviço público de saúde somente poderá deixar de interromper a gestação com esse argumento, quando houver outro médico para realizar o procedimento.
Luta pelo direito pleno: manifestação em São Paulo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Leia a íntegra da liminar do aborto legal por stealthing
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luiza Barros Rozas Verotti Vistos. Trata-se de ação popular, com pedido de liminar, ajuizada pela Bancada Feminista do PSOL, em face do Estado de São Paulo, alegando, em síntese, que o Centro de Referência de Saúde da Mulher de São Paulo tem negado a realização de procedimento de aborto legal nas hipóteses de gestação decorrente de retirada de preservativo durante o ato sexual sem consentimento, prática conhecida como “stealthing”.
Juntou documentos a fls. 18/179. A Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida apresentou pedido de habilitação a fls. 196/203. O Ministério Público do Estado de São Paulo opinou pelo deferimento da liminar (fls. 206/213). É o relatório.
Decido.
Os requisitos para a concessão da liminar estão presentes. Com efeito, há indícios de que o Centro de Referência de Saúde da Mulher de São Paulo tem recusado a realização do procedimento de aborto legal nos casos em que a gravidez resultou de retirada de preservativo sem autorização da mulher (fls. 173/179).
A prática denominada de “stealthing”, que consiste na retirada do preservativo durante a relação sexual, sem o consentimento da outra pessoa, pode caracterizar o crime de violação sexual mediante fraude, descrito no artigo 215 do Código Penal. O ato pune a conduta de ter relação íntima com alguém, por meio de engano ou ato que dificulte a manifestação de vontade da vítima.
Neste sentido, o “stealthing” configura um tipo de violação à liberdade sexual, pois envolve a remoção do preservativo sem o conhecimento e consentimento da parceira,alterando as condições acordadas para a relação sexual e viciando o consentimento inicial.
Vejamos o que diz o art. 215 do Código Penal: “Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Parágrafo único.
Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa”. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) A Lei nº 11.340 de 2006 ( “Lei Maria da Penha” ), por sua vez, traz em seu artigo 7º as formas de violência doméstica e familiar contra mulher.
Confira-se: “Art. 7º: (…) III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos” (grifei).
Sendo assim, depreende-se que o “stealthing” é uma forma de violência doméstica contra a mulher, pois no ato da retirada do preservativo sem o seu consentimento, o autor impede a vítima de utilizar o método contraceptivo optado no início da relação sexual. No que tange ao aborto legal, este possui duas modalidades, que são doutrinariamente chamadas de abordo necessário e sentimental.
O Código Penal autoriza taxativamente o aborto legal nos casos previstos no art. 128, quais sejam: “Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Assim, considerando que há previsão de aborto legal para as hipóteses de estupro, verifica-se que o inciso II pode ser aplicado por analogia ao crime do art. 215 do Código Penal, já que a retirada de preservativo sem consentimento durante o ato sexual equipara-se à violência.
Ora, a analogia é entendida pela aplicação da norma legal a um caso semelhante não previsto em lei, podendo ser usada nesta hipótese por ser in bonam partem. Outrossim, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição ao próprio artigo 128 do Código Penal, abrangendo outras formas de violência sexual como garantia aos direitos fundamentais da mulher.
É dever do Estado prestar assistência integral à mulher em situação de gravidez decorrente de violência sexual, por meio de um atendimento emergencial, integral e multidisciplinar em todos os hospitais integrantes da rede do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ressalte-se, ainda, que no julgamento do Habeas Corpus 124.306/RJ, o Ministro Luís Roberto Barroso frisou a autonomia da mulher sobre o próprio corpo e a escolha quanto à permanência ou não da gestação, salientando que a criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais:
Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.
Oportuno frisar que a Nota Técnica do Ministério da Saúde, juntada a fls. 47/172, estabelece que o “abortamento é permitido quando a gravidez resulta de estupro ou, por analogia, de outra forma de violência sexual” (fls. 115). Finalmente, o perigo da demora também está presente, uma vez que há risco de inúmeras gestações indesejadas decorrentes de violência sexual prosseguirem, com drásticas consequências à saúde física e mental da mulher.
Somando-se a esses aspectos, não se pode olvidar os riscos oriundos de relações sexuais realizadas sem o uso do preservativo, isto é, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Destarte, DEFIRO a liminar para determinar que o réu realize o aborto legal nas hipóteses de “stealthing” no Centro de Referência de Saúde da Mulher de São Paulo, nos termos requeridos. Antes de determinar a citação da Fazenda Pública, manifestem-se a autora e o Ministério Público sobre o pedido de intervenção formulado a fls. 196/203.
Após, nova conclusão. Intimem-se.
São Paulo, 17 de março de 2025.
Por Girrana Rodrigues