Artigo de Renata Phoenix e Paulo Niccoli Ramirez mostra qual a relação entre o filme Ainda Estou Aqui e a politização da arte. Leia o artigo completo em TVT News.
Fernanda Torres é uma iluminação profana contra o fascismo
por Renata Phoenix e Paulo Niccoli Ramirez
No dia 14 de novembro de 2024, Francisco Escorsim, que parece ter mais seguidores no Instagram do que senso-crítico, publicou no jornal “A Gazeta do Povo” texto com o seguinte título: Apesar de badalado pela mídia, “Ainda Estou Aqui” não vale a ida ao cinema. Uma das contestações de sua análise rasa do filme é a de que Eunice (personagem interpretada por Fernanda Torres) é utilizada como um símbolo, encaminhando o enredo para um ufanismo ideológico.
É bem certo que a opinião do referido crítico de cinema (embora o uso do termo “crítico” de cinema seja um exagero no que diz respeito à opinião sobre este filme) reflete parte do pensamento conservador e de direita, mais exatamente do que se pensa sobre o filme de Walter Salles, cuja personagem de Fernanda Torres foi premiada como melhor atriz no gênero drama para o Globo de Ouro de 2025.
Fernanda Torres vence Globo de Ouro na categoria melhor atriz em filme de drama. Imagem: Reprodução/TNT
O filme não é ideológico e nem ufanista. Ideologia, na perspectiva marxista, representa o mascaramento da realidade, uma forma de obscurecer os fatos e fazer com que as massas passem a incorporar os valores, preconceitos e visões de mundo da classe economicamente dominante. Ainda estou aqui faz exatamente o oposto, desperta reflexão, senso-crítico e oposição à ditadura militar que, por sua vez, ambicionou controlar a opinião pública com censura e eliminação de opositores.
Portanto, defender a ditatura militar é ideologia. Ainda Estou Aqui é oposto à ideologia. Quanto ao termo ufanismo, ele diz respeito ao orgulho exagerado, incondicional e cego sobre o país em se nasce ou vive. “Ainda estou aqui” não é ufanista, senão tece críticas ao Brasil regido pelos militares, demonstrando o caráter vergonhoso e truculento do regime então vigente. Vê-se que a análise de Escorsim sobre o filme e publicada no jornal “A Gazeta do povo” não condiz com a proposta e as sensações causadas pela premiada obra de Walter Salles.
No ensaio produzido na primeira década do século XX e intitulado “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin ao ser pioneiro no estudo do cinema propôs dois conceitos antagônicos: “estetização da política” e a “politização da arte”. Quanto ao primeiro conceito, estetizar a política refere-se ao uso das artes e meios de comunicação com fins massificadores, isto é, formas de produzir conformismo, naturalizar discursos de ódio, a incapacidade crítica e, sobretudo, o flerte com o fascismo.
Com a estetização da política tem-se preferências por elementos nada reflexivos ao estilo “tiro, porrada e bomba”, a pura distração destituída de reflexão, o deixar-se conduzir como rebanho em pasto verde. Benjamin observou como os nazistas passaram empregar a “estetização da política” como ferramenta de persuasão política, naturalizando a barbárie de suas ideias por meio de recursos cinematográficos inéditos e sedutores na aparência.
Pode-se dizer a partir desse primeiro conceito que, na era das redes sociais atuais, a estetização da política se faz presente com os negacionismos científicos e políticos, com a adesão e justificação dos discursos de ódio, naturalização da violência, dos golpismos ou mesmo de regimes ditatoriais da América Latina do século passado.
Desde o golpe contra Dilma em 2016 e com a ascensão do governo Bolsonaro, as redes sociais alcançaram o auge da ‘estetização da política’, ressoando não só recentemente nas críticas ao filme “Ainda estou aqui” como também no processo de relativização da ditadura militar; das mais recentes tentativas de golpe, seja o “8 de janeiro de 2023” ou a conspiração golpista-bolsonarista, cuja investigação e divulgação foi deflagrada pela Polícia Federal no final do ano de 2024.
Polícia Federal indicia Bolsonaro por Golpe de Estado. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Tal postura recorda o conceito de “banalidade do mal” de Hannah Arendt, posto que se promove a normatização da violência e a tentativa de justificar o injustificável, conforme dissemos. ‘Banalidade do mal’ e ‘estetização da política’ parecem ser termos correlatos e andar de mãos dadas.
O emocionante filme de Walter Salles e a sensível e a delicada interpretação que Fernanda Torres trouxe o drama de Eunice, viúva do ex-deputado Rubens Paiva, aparecem num momento histórico-político muito importante ao Brasil, aproximando-se do conceito benjaminiano de “politização da arte”, ainda não discutido aqui.
Politizar a arte trata do uso dos meios de comunicação como forma de gerar senso-crítico, reflexão, consciência e memória históricas, desconfortos contra a violência, o fascismo ou a barbárie.
Fernanda Torres apresenta de forma sútil em sua personagem estes elementos. No não dito, nos gestos corporais, nas lágrimas contidas, no sofrimento reprimido, mas expresso em sua feição, nestes elementos transparece a luta contra o fascismo.
Fernanda Torres venceu o Globo de Ouro porque sua personagem politiza a arte, mostra a luta de uma mulher forte diante de suas fraquezas contra a ditadura.
Torres presentifica o passado, o que significa dizer que a Eunice de “Ainda estou aqui” se faz presente em um momento crucial que vive o Brasil, sob o risco de retrocessos democráticos e retorno do regime de estado de exceção. Passado e presente se confundem com as ameaças antidemocráticas.
Fernanda Torres é uma iluminação profana contra o fascismo.
“Ainda estou aqui” é um filme que vale a pena ser visto e revisto, vale a ida ao cinema posto que expressa a luta contra governos autoritários e visões de mundo tolas.
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Ainda estamos aqui… vivos. Rubens Paiva não está aqui… desde 20 de janeiro de 1971. E ainda estamos aqui na Meta. Ainda estamos aqui e precisamos estar. Ainda precisamos falar sobre ditaduras. Os extremismos de direita, com múltiplos nomes, em vários países mundo afora, agora se espalham exponencialmente pela vida virtual. E o mundo é vivido, hoje, muito mais no cyberespaço do que no outrora conhecido “mundo real”. A nova ditatura digital desponta. 3 ou 4 homens brancos, bilionários, dominam os dois mundos, digital e presencial.
Mark Zuckerberg anuncia retrocessos civilizatórios e políticos brutais, 24 horas após Fernanda Torres receber seu Globo de Ouro de melhor atriz, com uma repercussão monumental (nunca antes vista, quase como uma vitória de Copa do Mundo) dentro da Meta do sr. Zucker. Uma curiosa coincidência. Em se tratando da vitória retumbante de um filme que grita por atenção para uma retomada de processo civilizatório que regimes ditatoriais proíbem.
Temos agora a inversão bizarra da “censura” de tempos pregressos. A “liberdade de expressão” que os neofascistas de agora pregam é, na verdade, liberdade para mentir, odiar, espalhar negacionismo científico, reescrever fatos históricos. E eles invertem tudo, moldam, modulam a verdade, os argumentos fatuais, para reescrever a História de um modo leviano tal que a grande massa, que não tem acesso à arte, à cultura, à educação, ao raciocínio e ao questionamento (vertentes do conhecimento humano que o fascismo abomina), compra como sendo a “narrativa” nova, esta palavra tão propagada e tão odiosa, dos tempos atuais.
“Zuckerberg segue a mesma cartilha de Elon Musk e declara uma cruzada contra quem revindica maior transparência”. Foto: Wikicommons
A antítese da “iluminação profana”, de Benjamin: vivemos a Nova Idade Média, Nova Idade das Trevas. O anti-Iluminismo, a anti-democracia, o fascismo funcional, tal qual o analfabetismo político. Fundamentalismo religioso misturado com fascismo. Talvez o prenúncio de uma nova guerra mundial, que será física e virtual, com poder de devastação sem precedentes.
Mistura de Trump reeleito, potência bélica dos EUA, fanatismo, grupos de extermínio, homens-bomba, pessoas que se explodem para salvar a “pátria” dos “tribunais secretos” que o sr. Zucker, com a maior e mais inacreditável desfaçatez, anunciou agora, pós-Globo de Ouro de Fernanda Torres: os “tribunais secretos comunistas”, que podem “transformar o gênero das crianças”, elas iriam meninos para a “escola vermelha” e voltariam meninas. A massa ignorante, triste e violentíssima que compra a “narrativa” e se aliena cada vez mais dos fatos, da ciência, da arte, da cultura, da História.
Anistias e revisionismo histórico não são sobre o passado, são o presente e a construção do futuro. Novas ditaduras espreitam.
A cada do fascismo sempre no cio
Não há descanso. Mas existe a Arte, existem filmes, existem atrizes… faróis na escuridão. Estejamos atentos. E despertos.
Sobre os autores
Renata Phoenix é escritora, poeta e produtora e diretora de vídeo. Trabalhou durante 15 anos para o GNT. Produziu todos os programas de Fernanda Young no canal.
É autor dos livros Sérgio Buarque de Holanda e a dialética da cordialidade (Educ, 2011), Ética, cidadania e sustentabilidade (SENAC, 2021),
O Golpe de 2019 na Bolívia (Coragem, 2023), entre outros ensaios e artigos acadêmicos em livros e revistas direcionados às Ciências Humanas.