A denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) usa a delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens, como peça-chave para sustentar a acusação de envolvimento em uma ‘trama golpista’. No entanto, ao mesmo tempo em que enfatiza trechos que comprometem Bolsonaro, a peça assinada pelo procurador-geral Paulo Gonet deixa de fora declarações do próprio Cid que contradizem parte da acusação. A informação foi divulgada pela Folha de S. Paulo.
Nos últimos depoimentos de novembro e dezembro de 2024, Cid afirmou que não tinha certeza se Bolsonaro sabia do plano “Punhal Verde Amarelo”, que previa a morte do ministro Alexandre de Moraes e dos então eleitos Lula (PT) e Geraldo Alckmin (PSB).
“Eu não tenho ciência se o presidente sabia ou não do plano que foi tratado, do Punhal Verde Amarelo, e se o general Mário levou esse plano para ele ter ciência ou não”, disse Cid à Polícia Federal em dezembro. Essa declaração, no entanto, não foi incluída na denúncia da PGR, que afirma que Bolsonaro estava ciente do plano e o autorizou.
Outro ponto destacado pela Procuradoria é que Bolsonaro teria solicitado o monitoramento de Moraes. A denúncia vincula essa ação ao plano de assassinato, mas ignora a explicação de Cid: segundo ele, o ex-presidente queria apenas saber se o ministro estaria se encontrando com o então vice-presidente Hamilton Mourão, e não para fins conspiratórios.
Desde que firmou um acordo de delação premiada em setembro de 2023, Mauro Cid passou por mudanças em suas declarações. Em áudios vazados, chegou a alegar que estava sendo pressionado a relatar eventos que nunca ocorreram. Em novembro, alterou partes do seu depoimento, após ser confrontado com novas evidências e sob risco de perder o benefício da delação.
Outro ponto ignorado pela PGR envolve a suposta reunião de militares em Brasília em 28 de novembro de 2022, apontada como parte da articulação. Cid declarou que o encontro foi apenas um “bate-papo de bar” entre oficiais insatisfeitos com o resultado das eleições.
“Naquele momento ninguém botou um plano de ação, é esse ponto que eu quero deixar claro. Ninguém chegou com um plano e botou um plano na mesa e falou: ‘nós vamos prender o Lula, nós vamos matar, nós vamos espionar’”, afirmou Cid à PF.
Dois dias depois, em outro depoimento prestado diante de Moraes, ele ajustou a versão sobre um encontro anterior, na casa do general Walter Braga Netto, afirmando que houve discussões sobre criar caos social para justificar uma intervenção militar. No entanto, ele ressaltou que não acompanhou toda a reunião e não sabe dizer se um plano real foi elaborado.
A acusação contra o general Estevam Theófilo, ex-chefe do Comando de Operações Terrestres do Exército (Coter), baseia-se na delação de Cid, que sugeriu, em mensagens, que o militar estaria disposto a colocar tropas nas ruas caso Bolsonaro assinasse uma medida de exceção.
Porém, em seus últimos depoimentos, Cid afirmou que Theófilo respeitaria a hierarquia e não passaria por cima do então comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes.
“Se o presidente desse a ordem… Mas o problema é, eu não sei se ele passaria por cima do general Freire Gomes. Isso não posso confirmar”, disse Cid. Essa parte do depoimento, que poderia enfraquecer a tese de adesão militar ao ‘golpe’, foi omitida pela PGR.
Outro ponto relevante que não foi considerado pela denúncia são as declarações de Cid negando que Bolsonaro tenha planejado os ataques de 8 de janeiro de 2023. Embora mensagens do ex-ajudante de ordens indiquem que “algo poderia acontecer” após a posse de Lula, Cid explicou que essas falas foram mal interpretadas pela PF e não tinham relação com atos de 8/1.