“Em um mundo que jaz no Maligno”, escreve o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) em “Criando Filhos para o Amanhã”, “muitas são as investidas contra a família”.
O título foi lançado pela cristã editora Vida na Bienal do Livro, em coautoria com seus pais, os pastores Edésio de Oliveira e Ruth Ferreira. O próprio Nikolas virou pai em março, quando nasceu Aurora, a primeira de muitos filhos que diz orar para Deus lhe dar.
Até porque, ele afirma à reportagem, a orientação bíblica para crescer e se multiplicar é uma forma de pôr “heranças do Senhor” para “lutar contra as trevas”. Por trevas, leia: valores progressistas como feminismo e direitos LGBTQIA+.
A tese que o norteia é pop em círculos conservadores: a família tradicional brasileira, que ele define como “homem, mulher e sua prole”, está a perigo. O que faltava, segundo Nikolas, é literatura para municiar casais que queiram para seus filhos uma educação com matizes cristãos.
“Quando eu pesquisei sobre educação dos filhos, principalmente [no mercado] brasileiro, tinha pouquíssimos autores.” Gente como Samia Marsili, que em seu perfil destaca ser mãe de sete meninos, e Luciano Subirá, pastor de best-sellers como “O Propósito da Família”.
“Mas, assim, nada muito específico”, diz o parlamentar. “Escrevemos este livro para, se Deus quiser, ser uma referência de educação conservadora para as crianças no nosso país.”
Esse pacote inclui eventuais castigos físicos como corretivo infantil, em desacordo com a Lei da Palmada, sancionada por Dilma Rousseff (PT), então presidente, em 2014. Cinco anos depois, Delegado Waldir (União Brasil-GO), da linhagem direitista da Câmara, propôs revogá-la.
Waldir via a legislação como farta em “viés ideológico” e sintoma de um Estado que se mete “em matérias reservadas à família”. Não tem por que equiparar “uma simples palmada” a um “tratamento cruel ou degradante”, afirmou à época.
A pastora Ruth se lembra de quando uma irmã de Nikolas, com cerca de quatro ou cinco anos, fez pirraça e levou uma chinelada. Seria um um “ato de amor” e “último recurso, quando as palavras já não surtem efeito”, e a criança precisa entender que “há consequências para o mau comportamento”, diz.
“Quem se nega a castigar seu filho não o ama; quem o ama não hesita em discipliná-lo.” O livro evoca essas palavras do bíblico rei Salomão para questionar se elas seriam metáfora para a autoridade parental ou defesa da punição física.
O trio fala na obra sobre infância, adolescência e juventude dos filhos. Edésio é descrito como o pai bacana que no máximo xingou alguém de banana num “momento caótico do trânsito”. Ruth, como o “coração” da casa. Já Nikolas é o filho que cresce com regras rígidas em casa, de dormir às 20h a tomar banhos que não podiam exceder dez minutos.
Um bom varão que adolesce sob a égide cristã. Como ao contar que bebeu o primeiro drinque aos 15 anos e passou tão mal que não conseguiu participar do louvor no culto. Reproduz o que ouviu do pai:
“Fique tranquilo, filho. Você envergonhou a Deus, não a mim”.
Clássicos exaltam masculinidade e condenam masturbação
Editoras veem alta demanda para títulos do gênero. Pablo Marçal (PRTB), quando ainda era candidato a prefeito de São Paulo, citou “Educando Meninos” ao responder uma pergunta sobre educação sexual nas escolas.
O título do americano James Dobson trata homossexualidade como distúrbio e diz que Cristo pode curá-la, posição contrária à da Organização Mundial da Saúde.
Também defende a “surra como amor”, aponta o pastor e teólogo Ronilso Pacheco, crítico ao conteúdo.
“A surra vem como um método corretivo fundamental, bíblico e inegociável para lidar com crianças que, por pirraça e desobediência, deixam ‘suas famílias infelizes’, nas palavras dele.”
A educação de Dobson vislumbra a masculinidade “como um projeto de poder”, afirma Pacheco. “Masculinidade e virilidade têm impacto direto na força de uma nação e sua autoridade perante o mundo. Devem compor desde os soldados que vão a guerra aos maridos que governam suas casas, e a obrigação de proteger a família e subjugar física e sexualmente suas mulheres. É a criação de homens infalíveis.”
Nikolas também vai sublinhar, em seus escritos, “papéis muito bem estabelecidos pelos padrões bíblicos”: o homem como provedor do lar, e a mulher como sua auxiliadora.
A Casa Publicadora Brasileira, de tradição adventista, tem seu clássico na área. “Orientação da Criança”, publicado no Brasil em 1962, já vendeu quase meio milhão de cópias. São instruções deixadas por Ellen G. White (1827-1915), cofundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia, para a criação dos filhos.
Uma preocupação de White, mãe de quatro garotos: masturbação. Em 1864, ela escreveu um “apelo às mães” que começa assim: “Minhas irmãs, minhas desculpas por me dirigir a vocês sobre este assunto. Sou mãe e sinto-me alarmada pelas crianças e jovens que pelo vício solitário estão se arruinando para este mundo e para aquele que está por vir”.
Mais de um século e meio depois, “a doutrinação do público infantil serve de estratégia de sobrevivência para muitas comunidades religiosas”, diz Sérgio Pavarini, à frente do podcast #SimPodCrer e ex-gerente de marketing da editora Vida, que hoje cuida dos livros de Nikolas Ferreira.
Esse nicho não era forte pelas bandas brasileiras, segundo ele. Pode ser que vire um filão. A ver. “Com exceção do clássico ‘Ouse disciplinar’ [de James Dobson], não me lembro de livros que tenham feito muito sucesso nessa área. Eventuais lançamentos ocorrem mais pela relevância do autor. Se Nikolas escrever sobre ‘como ensinar calopsitas a cantar com voz masculina’, vai fazer sucesso.”