Por Anna Carolina Longano
Ouviram do Ipiranga as margens plááááácidas… Não, este não é um texto sobre o 7 de setembro. É um texto sobre o final de julho e o começo de agosto. Sobre aquele período em que ouvimos 3 vezes o hino do Brasil sendo tocado na cidade da torre, do croissant e daquela revolução na qual redigiram os direitos dos homens, mas quando uma mulher reclamou e redigiu o direito das mulheres, foi decapitada. Estou falando das Olimpíadas de Paris!
Para mim, aqueles 15 dias deveriam ser um gigantesco feriado mundial. A gente parava tudo por aqui só pra ficar admirando o que aquelas pessoas fazem. Foi isso o que eu queria fazer, mas é óbvio que não foi isso que fiz. Entre um corre e outro, eu ia burlando o sistema como podia, sabe? Acompanhava no celular, ligava rapidinho a TV antes de sair, atrasava o passo quando passava em frente a um boteco… aliás, fiz isso bem quando o futebol feminino brasileiro estava jogando a semifinal e um dos botecos da rua lá de casa estava com a tv ligada no…basquete 3X3. Ué, será que no país do futebol esqueceram que a Seleção tava jogando?
Nesses meus tantos anos de vida acompanhando as Olimpíadas, confesso que essa teve um gostinho especial para mim. Sei que o desempenho do Brasil não foi o esperado, mas o esperado por quem? Eu, aqui, do conforto do meu sofá, sem acordar cedo, sem me esforçar, sem ficar lutando para ganhar dinheiro e valorização, acho que as pessoas atletas brasileiras estão de parabéns. Mas vou deixar um parabéns ainda mais orgulhoso e entusiasmado para as mulheres.
A maioria da delegação brasileira era formada por mulheres. As três medalhas de ouro do Brasil vieram pelas mãos, braços, pés, pernas e corpo inteiro de quatro mulheres: Beatriz Souza, Rebeca Andrade, Duda e Ana Patrícia. As três vezes que o Brasil ocupou o lugar mais alto do pódio e ouvimos nosso hino foi por conta dessas quatro mulheres. Enquanto eu limpava discretamente a lagriminha que se formava no canto do meu olho ao ouvir os primeiros acordes do hino, olhava para a TV e pensava: essas mulheres me representam.
Opa…espera! Vamos voltar um pouco aqui, a lagriminha volta pra dentro do olho que o momento agora é de reflexão.
Rebeca Andrade, mulher negra, extremamente forte, com a voz fina e uma aparente calma que a fez, publicamente, chorar menos do que eu enquanto ela ganhava a medalha. Duda e Ana Patrícia, uma mulher branca, outra negra, super altas, rolando e pulando na areia fofa com uniformes que realmente me fazem pensar na quantidade de areia que cai delas na hora do banho… ai, que desconforto!
Em quantas situações da minha vida essas mulheres, tão singulares, apareceram como um ícone de representação de grandes grupos?
Nós, pessoas que nos autoidentificamos como mulheres, formamos um dos maiores grupos desse país. Agora, dentro desse grupo tão grande e tão heterogêneo, quantas vezes as mulheres negras, gordas e/ou altas foram a principal figura a representar um grande grupo?
Ainda bem que as Olimpíadas acabaram para eu desligar a TV e ir olhar um pouco para meus livros e nossa história. Como feminista, quantas vezes vi mulheres como essas serem um símbolo desse grande e diverso grupo? Atualmente, a coisa melhorou. Na minha bolha feminista, não conheço alguém que se autoidentifique como feminista e não saiba quem é Sueli Carneiro ou não reconheça a Conceição Evaristo de longe. Mas isso é de agora. Se a gente olhar para trás, para a nossa história, a história do feminismo brasileiro… bem, na prática a teoria é outra.
Feminismos
Pra começar, é necessário quebrar essa ideia do GRANDE ÚNICO FEMINISMO BRASILEIRO. Esquece! Há um movimento feminista, de mulheres lutando por seus direitos, contra opressão e exploração sexista. Agora, dentro desse movimento há muitos feminismos. Feminismo liberal, feminismo negro, feminismo trans, eco-feminismo…e a lista não para de crescer. Ainda bem, afinal são esses feminismos que fazem com que percebamos que temos algo em comum, sim, que é nossa autoidentificação como mulheres. Agora, será que os anseios, injustiças e conquistas que a mulher branca que consegue assistir alguns jogos olímpicos confortavelmente de seu sofá são os mesmos da mulher preta gorda que luta?
Não, não são. E aí que surgem os conflitos que fazem os feminismos sempre estarem em movimento. Nossas diferenças não precisam impedir que lutemos juntas, que eu admire outras lutas, corpos e histórias. Outras mulheres podem e devem, sim, me representar!
Não sei pelo que essas quatro mulheres passaram para chegarem lá, mas desconfio que meu corpo branco, magro, duma altura mediana, sofreu muito menos violências do que os corpos delas. Também não sei o que é ter um terço do reconhecimento mundial que elas tiveram, mas desconfio que seus corpos, pelo menos nesse momento, foram muito mais valorizados do que o meu será até o fim de minha vida!
Ainda vão aparecer na tv para serem admirados? Ainda aparecerão como representações positivas de nosso país?
Otimista com o resultado das Olimpíadas, espero que sim. Mas sei que a luta é árdua e longa. Ou você acha que não percebi que, enquanto escrevo essas linhas, várias atletas paraolímpicas estão ganhando medalhas pelo Brasil enquanto minha tv está desligada, não conheço seus nomes e nos botecos as tvs voltaram apenas a transmitir futebol masculino, crime e violência?
Saindo dos livros e voltando para o mundo real, termino este texto por aqui. Preciso ligar a tv e conhecer outras mulheres e outros corpos que me encherão de orgulho ao subirem no pódio.
Sobre a autora
Anna Carolina Longano é Bacharela em Artes Cênicas pela USP, Mestra em Ciências pela USP e Doutoranda pela USP pesquisando representações de mulheres, feminismos e escrita feminista. Aprendeu com a mãe que nesse mundo patriarcal, ia ter que se virar. Vem se virando desde então, como artista, pedagoga, escritora e pesquisadora feminista. Contato: [email protected]
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